O SENTIDO RELIGIOSO DA EXPERIÊNCIA AMOROSA: CRISE, RENOVAÇÃO E DESAFIOS DO TERCEIRO MILÊNIO.
Autor: Luiz José Veríssimo (Psicólogo e Doutor em Filosofia pela UERJ. Professor de Psicologia Existencial e Humanista na UVA).
Nosso trabalho visa dar seqüência ao estudo que desenvolvemos (apresentando numa comunicação no Colóquio Internacional Filosofia Prática, promovido pelo Departamento de Pós-Graduação da UERJ, em 24 de maio de 2000) sobre a noção de uma ética do cuidado, elaborada pelo teólogo e filósofo Leonardo Boff. Pretendemos, aqui, pensar essa proposta ética quanto à intersubjetividade. A ética do cuidado se contrapõe à ideologia da cultura narcísica e consumista inserida no contexto da globalização neoliberal.
I. Algumas considerações sobre identidade, desejo e afetividade na cultura narcísica neoliberal.
A lógica econômica da sociedade de consumo neoliberal demanda que ela produza, instaure e incremente a carência no âmbito do desejo. Essa carência é constitutiva do seu sistema de produção e consumo. A falta é a mola-mestra do consumo. O consumir faz funcionar a máquina neoliberal. O consumo é um dos fatores que garante a produção tecnoindustrial, e assim, propicia a manutenção do sistema econômico.
Na verdade, a falta não é apenas produto desse ou daquele sistema, econômico ou ideológico, mas ela é constitutiva da condição humana, na medida em que ela se liga ao desejo. Todo desejo implica a falta, pois é um querer completar-se, ampliar as possibilidades, experimentar novas vivências, aprofundar os horizontes já experimentados. Para Sartre, como lemos em sua conhecida obra Ser e tempo (2001), a falta é ontológica: o ser humano é falta. Pois é um ser cuja constituição mais própria é a “nadificação”, vale dizer, a possibilidade de negação do que é estabelecido dogmaticamente como “verdade”, “realidade”, “causalidade”, “finalidade”.
O contexto ideológico da sociedade neoliberal procura atrelar a falta à compulsão ao consumo. Tal contexto se baseia na propaganda, numa lógica que visa a conquista, manutenção e expansão do mercado consumidor, na produção de imagens que procuram persuadir o “público-alvo” a adotar valores, idéias e comportamentos compatíveis com interesses da política de mercado. Nesse contexto, o desejo não raras vezes se vê reduzido ao desejo – de consumo. A expressão do desejo é sensivelmente afetada, e, por vezes, seria o caso de admitir, é modelada pelo desejo – de consumo. As incontáveis expressões do desejo, como o desejo de potência, desejo de amar e de ser amado, desejo estético e erótico, desejo pelo sagrado, vêem-se empobrecidas, manipuladas e atreladas ao condicionamento dominante da instância ideológica normativa: o desejo – de – consumir.
O quadro que descrevemos em linhas gerais nos leva a pensar que a ideologia consumista estimula determinados comportamentos. Os indivíduos passam a responder à demanda compulsiva de consumo projetando-a também nas suas relações sociais e privadas. Eles passam a assimilar e a desenvolver uma moral que insere nas suas relações interpessoais a ideologia neoliberal: uma ideologia baseada no desejo – de consumo e no estímulo à carência que permita a manutenção desse desejo. Assimilando essa idéia, os indivíduos passam a encarar as outras pessoas e as suas relações segundo a perspectiva desejo/consumo. Eles se tornam eternamente insatisfeitos com o que têm, insaciáveis no desejo, condicionam aa suas relações íntimas, familiares e profissionais à mentalidade do cálculo e do lucro: “o que eu tenho a ganhar, o que não quero perder”. Nesse quadro, o sujeito se relaciona com vínculos precários, intercambiáveis e frágeis. Desenvolve-se no contexto neoliberal uma cultura narcísica, ou seja, uma cultura que estimula o voltar-se para si, para os interesses próprios ou do grupo em que se investe certos vínculos. O psicanalista e psiquiatra Jurandir Freire Costa chega a afirmar a expressão “decadência do político”. Ele diz: “Na verdade, o que existe hoje é uma despreocupação com o bem comum – o que eu chamo de decadência do político” (1999, p. 122).
No presente estudo, que procura esboçar a grosso modo um quadro atual dos relacionamentos entre as pessoas, observamos uma tendência marcante: em vez de uma relação Eu-Outro, fundada no “Eu-Tu”, como diria Martin Buber, vive-se predominantemente no âmbito do “Eu-Eu”, em que o outro é desejado como um objeto de satisfação pessoal. Segundo Jurandir Freire (1999, p. 123),
A cultura irrefletida da sexualidade diz apenas isso: busque o seu lugar numa sociedade de ofertas múltiplas, encontre seu produto favorito no supermercado de sensações. Nunca fomos tão pródigos em sexualidade como agora: nunca fomos tão insaciáveis e insatisfeitos com o sexo como agora.
Devemos lembrar que, nesse contexto, não só a sexualidade,, como a afetividade, assim como a amizade, a cordialidade se tornaram produtos de um interesse utilitário visando basicamente um bem individual.
A ideologia narcísica revela, enfim, uma moral em que o outro deve ser para-mim, e não ser-comigo. O ser humano não é reconhecido na amplitude ontológica de um nó de relações. Ele é visto e sentido por si mesmo como um nó de si, centrado em si mesmo, para ele o mundo é um objeto de aquisição e descarte, e não o campo próprio e originário da existência.
Comentando os resultados de pesquisa sobre os parâmetros de felicidade para os brasileiros, comenta Jurandir Freire (1999, pp., 96-97):
O interesse pela vida privada sobrepõe-se, de longe, a qualquer preocupação com a vida pública. Meu salário; meu emprego; minha família; meu sexo; meu sentimento, enfim, é o que importa. (…) A política e o bem comum são coisas do passado. Dinheiro, saúde e sucesso são o fetiche da fórmula (…) de felicidade.
No plano dos relacionamentos amorosos que se inscrevem na esfera do modo de ser narcísico, vemo-nos perante o que o Professor Jurandir Freire chamou de “supermercado de sensações”: constrói-se a identidade a partir de um modelo que se baseia no conforto, na compulsão ao consumo, numa irrefletida sexualidade, num culto ao corpo em que a pessoa molda estoicamente as formas para ela mesma se tornar um cobiçado objeto de consumo; desenvolvem-se relacionamentos que seguem a lógica do lucro e do bem individual.
Nesse modelo narcísico-consumista, a dor e o sofrimento vão se tornando cada vez mais marginais. Em geral, há um consenso em torno da crença de que o amor é um supremo bem, a mais autêntica expressão da felicidade. No entanto, sem demora, se esse amor se mantém numa lógica do lucro e da identidade narcísica, chega o momento em que se enuncia um pensamento acerca do amor que se torna cada vez mais lugar-comum: “Quando é bom não dura e quando dura já não entusiasma (Costa, 1998, p. 11).”
A identidade individualista e narcísica que descrevemos é constituída a partir de um modelo elementar de busca de prazer / evitação do desprazer (veja Sem fraude nem favor, p. 209 e segs.). Torna-se quase insuportável conviver com a diferença, com o inusitado, com a falta, com a alteridade, com o aspecto a um só tempo fascinante e terrível do mistério que é o outro. As desilusões, as diferenças entre as singularidades, os lutos são violentamente mitigados; apela-se ao pastor, à mãe de santo, ao psicanalista, aos remédios e florais, às predições oraculares, enquanto a vivência do sentimento, a elaboração do sentimento, assim como uma reflexão acerca dos valores em jogo caem num imenso esquecimento. Em suma, negligencia-se usualmente que o sentimento não se funda numa mera “espontaneidade”, que ele requer uma constante elaboração moral e psicológica.
Dessa forma, perde-se de vista a noção do amor como um aprendizado de si e do outro; como troca, sem ter como móvel uma razão calculadora; como comunicação, relação paritária, compaixão, participação, confronto consigo próprio, cultivo do encantamento e da admiração, enfrentamento de crises e capacidade de reencantamento e renovação.
II. Fundamento religioso da ética do cuidado
As noções de aprendizado, comunicação, solidariedade são formas de desenvolver uma ética do cuidado, proposta por Leonardo Boff. Uma ética do cuidado significa uma proposição que visa resgatar a dimensão profunda da existência. Ela apresenta um caráter “religioso”, segundo o sentido originário de religião.
O sentido originário de religio tem diversas interpretações; segundo Lactâncio e Agostinho, ele deriva da ação de ligar. Para os padres, naturalmente tratava-se de um ligar-se a Deus. O que simboliza “Deus” no contexto da proposição de um caráter religioso referente à ética do cuidado?
Podemos interpretar “Deus” como uma expressão do que é estimado como sagrado. O sagrado simboliza tudo aquilo que adquire um valor de suprema excelência, o mais estimado, querido, desejado e cultivado diligentemente.
Na experiência cristã, Deus acolhe, por assim dizer, o valor que é mais caro à cultura cristã (ou, pelo menos, um dos mais fundamentais): o amor. A experiência cristã nos traz a concepção do amor como um fundamento não restrito ao campo religioso institucional e ritual, mas, acima de tudo, a experiência cristã procura apresentar o amor como um fundamento da existência humana. Leonardo Boff (2000) considera dois pilares na experiência cristã: a importância decisiva dos pobres e a centralidade do amor. Segundo Leonardo Boff, para Jesus e para todo o Novo Testamento o amor é tudo: ele cita Mateus: se amares a Deus, igualmente amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mt, 22, 37-40).
Deixemos Deus entre parêntesis e fixemos a nossa atenção na sentença: “amar ao próximo como a ti mesmo”. Ela faz referência enfática ao outro no exercício do amor. Essa frase, que nos provoca há dois milênios, lembra que o amor, nesse caso, não é uma mera fruição dos sentimentos, um mero descarrego dos sentimentos, uma invasão de conteúdos afetivos possuindo o sujeito descontroladamente O amor é uma elaboração racional e afetiva, ou seja, que implica um árduo e trabalhoso diálogo entre a consciência reflexiva e os afetos, entre logos e pathos (Boff, 2003), entre um eu e o outro. Assim, o amor unifica os opostos, promovendo a dialogação, a ligação interativa entre eles, em que cada um dá um sentido profundo ao outro, mobiliza e afeta decisivamente o outro. Aqui, revela-se para nós um sentido importante da dimensão religiosa concernente à experiência amorosa fundamentada numa ética do cuidado: a ação de ligar o eu com o outro. Essa ação é mais bem definida como um processo de dialogação, troca e comunicação. Como diz Leonardo Boff (1999, pp. 91-92), “o cuidado inclui duas significações básicas: a primeira, a atitude de desvelamento, de solicitude e de atenção para com o outro. A segunda, de preocupação e de inquietação, porque a pessoa que tem cuidado se sente envolvida e afetivamente ligada ao outro.” Trata-se, portanto de uma inter-ação de ligar, de uma ligação mútua que propicia a abertura ao diálogo e a consideração pela presença do outro na minha existência.
Diante da proposição de uma ética centrada no amor e no cuidado pode-se apresentar a seguinte ressalva: “Mas fulano, fulana não responde à minha expectativa, às minhas necessidades: é acomodado, não fica comigo sempre que eu quero, é ressentido, crítico, etc.” Então, segue-se uma série de lamentações, queixumes e reprovações. Nesse ponto, Leonardo Boff lembra que o amor apresenta a perspectiva do caráter incondicional. Isso não quer dizer que devamos ser anjos e histericamente sorrir para todos indistintamente, programando nossa mente e nosso coração para não se afetar, não se abalar com nada.
Parece-nos que um sentido possível para o amor incondicional é sugerido em Mateus, na narrativa em que Cristo escandaliza os seus discípulos ao sentar com pecadores e publicanos. “Porque se vós não amais senão os que vos amam (…) e se saudardes somente aos vossos irmãos, que fazeis nisso de especial?”(Mt, 5, 43-47) Façamos uma interpretação para essa máxima. Ela expressa bem a nossa expectativa em relação à pessoa amada, assim como a condição humana da pessoa na intersubjetividade.
A pessoa nos frustra, ela nos faz sofrer, seja por sua perda, pelo seu padecimento, seja por alguma ação sua que nos fere, que nos ofende, que nos incomoda. Enfim, a pessoa “quebra” imagens que cultivamos de nós próprios, e desestabiliza, por assim dizer, nossos pontos de vista e nossos valores. Desse modo, a pessoa instaura uma ferida originária, que lesa o nosso desejo de felicidade. Desmantela, por assim dizer, inúmeras ilusões e expectativas de toda ordem, a começar por um desejo que habita em todos nós, que podemos perceber ou experimentar irrefletidamente: o projeto de imortalidade nossa e da pessoa amada, quer dizer, o desejo de uma permanente presença e de um permanente enamoramento e beatitude.
Esse quadro descreve uma faceta da condição humana inerente a cada pessoa Ele nos ajuda a constatar que, enquanto buscarmos a falácia narcísica no supermercado de sensações, amando somente na justa medida da intencionalidade do outro como nosso objeto, queremos dizer, de um desejo do outro que nada mais espelha que um desejo a nós próprios através de termos o nosso reconhecimento ou identidade através do seu olhar, da sua atenção, da posse de nossa carne ou do possuir a carne do outro, não temos como nos dar conta de que só amamos a nós mesmos.
O que as pessoas dificilmente se dão conta é a distinção entre reconhecer a alteridade, na medida em que a diferença instaura um conflito entre seres desejantes e pensantes, e se sujeitar ao desejo do outro, ou tentar manipulá-lo a nosso favor, na tentativa falaz de preservar um projeto de felicidade a todo custo. A abertura à liberdade de si e do outro, a convivência das diferenças, a descoberta de si mesmo e do outro na relação, para muita gente é uma aporia intransponível, que as leva a manter e desenvolver defesas narcísicas.
No afeto narcísico, o outro é querido como um meio para satisfação do desejo próprio. O outro é um meio para o amor próprio, e não uma finalidade do amar.
O outro como meio para um amor-próprio é uma forma possível de nosso modo de ser, porém, a condição humana não se encerra nesse eterno narcisismo, nesse eterno jogo de apropriação entre um eu e o outro. Ao mesmo tempo em que amamos narcisicamente, temos a possibilidade de amar o outro enquanto tal. Freud afirma no texto em que procura pensar o narcisismo: “Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar (Freud, 1974, vol. XIV, p. 101).”
Em outros termos, inclinamo-nos ao outro não só pelo que possa nos dar em termos de respostas às nossas expectativas, desejos e ideais. Inclinamo-nos à outra pessoa também por um amor a ela que não temos como saber o seu fim, a sua origem, mas que de alguma forma nos é suscitado por essa pessoa, pelo convívio com ela, pela saudade.
Devemos, então, considerar que, por um lado, o outro pode satisfazer algumas fantasias de carinho, sublima o pânico da solidão, introduz a esperança de aceitação, acende o enamoramento do infinito; por outro lado, a outra pessoa me frustra, nem sempre atende aos meus desejos, às minhas expectativas, escapa permanentemente ao meu controle e à minha compreensão. O mesmo se dá comigo em relação a ela.
Semelhante consciência crítica do amor faz sair do esquecimento que o amor é uma elaboração entre duas pessoas, elaboração de uma espécie de obra a dois, que realiza o tão sonhado êxtase, a tão sonhada interação em plenitude, mas também envolve a dor, o luto, a consideração do outro ponto de vista, a consideração e a descoberta de uma afetividade que “funciona”, por assim dizer, e se organiza de forma inteiramente diferente, o deparar-se com respostas inusitadas, com respostas que para nós soam como repetições, mas que podem não estar ainda sendo devidamente compreendidas, e nunca o serão, pois cada pessoa é um mistério para si mesma e para o outro. Mistério que revela a pessoa como um ser existente, vale dizer, um ser de possibilidades.
O aspecto religioso, originário de religio, relativo à uma ética do amor e do cuidado, pode assumir mais uma feição: religio pode ser admitido com o sentido de tornar a ligar. Etimologicamente, religião provindo de religare, aceita também o sentido de “ligar novamente.” Vejamos o que isso significa.
Estamos permanentemente numa dinâmica de sedução, de fascinação e encantamento e de desencantamento, frustração, luto. Trata-se de um ligar-se, de um desligar, e de um tornar a ligar. Esse processo é incessante, ele promove aproximações e separações entre as pessoas, mas ele também se inscreve no interior de um mesmo relacionamento. Nesse processo, o tornar a ligar pode ser mais do que um apaixonamento, pode integrar os afetos no desejo que resulte num projeto de realização de um bem comum. Na alternância entre enlace e desenlace é tecida uma estória em nossas relações. Uma estória que tem a ver com o mito particular de cada um, isto é, com a história de vida das pessoas envolvidas, ao mesmo tempo, sublime e trágica.
Com relação ao aspecto trágico da existência no que se refere ao amor, a consciência dele requer um trabalho diligente de elaboração racional e afetiva que não pretende negar os inúmeros aspectos do existir. A consciência do trágico entende que sentimentos amorosos não implicam necessariamente prazer, e por vezes podem, acrescentaríamos numa linguagem existencial, despertar a consciência de si para a angústia. Uma vez mais recorremos ao pensamento de Jurandir Freire:
“Sentimentos como piedade, compaixão, indignação, ou mesmo culpa e remorso (…) não dependem de prazer para serem desejados. [Assim] o eu moral pode se satisfazer com aquilo que deixa insatisfeito o eu corporal ou com o que nada tem a ver com prazeres sensoriais.” Jurandir Freire acrescenta que a existência de estados afetivos como angústia, desconforto, mal-estar, tristeza, preocupação, inquietação não nos impede de afirmar que sentimentos como “carinho por animais em extinção” ou “preocupação com crianças abandonadas” podem causar desprazer afetivo e, ainda assim serem sentimentos que aprovamos, recomendamos e aprendemos a reconhecer como fontes de satisfação pessoal (moral, espiritual, etc.) (Costa, 1998, pp. 210-211).
III. A experiência originária do mistério e da mística na intersubjetividade.
O cuidado na experiência amorosa nos dá oportunidade de descobrir que a elaboração da dimensão trágica da existência (que envolve tanto o êxtase e o prazer, quanto o sofrimento e a dor) instaura a possibilidade concreta de um sair de si. Estamos, aqui, sob inspiração da estética dionisíaca. Acreditamos que os mitos expressam muito da condição humana. Ora, Dioniso é o deus do êxtase (o sair de si), do entusiasmo, como também, da dilaceração e da dor. A propósito da estética dionisíca, Maria Helena Lisboa Cunha nos traz uma oportuna passagem de Nietzsche, da obra Assim falou Zaratustra. O que diz Zaratustra, que todos podemos escutar, Em O canto ébrio?
A dor é também uma alegria, (…) a noite é também um sol (…) um sábio é também um louco (…) tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, amoroso; ó! É assim que vós amastes o mundo, – vós que sois eternos, vós o amastes eternamente e sempre; e vós dissestes também à dor: passa, mas volta, porque toda alegria quer – a eternidade (Nietzsche, cit. por Cunha, 2003, p. 14).
O sair de si tem um sentido ambíguo. Por um lado, pode significar uma espécie de alienação de si mesmo e um mergulho na impessoalidade da norma, do que todo mundo faz e “quer”, dos modelos publicitários, da moral ideológica vigente; pode significar, igualmente, um perder-se no outro, o que, no fundo, não é mais do que querer o outro como um objeto de satisfação para si. De modo diverso, o sair de si como uma experiência originária do êxtase remete à dimensão do cuidado; o êxtase é um contraponto da cultura narcísica: ele não se encontra disponível nas prateleiras do supermercado de sensações descrito por Jurandir Freire.
Na tese de Leonardo Boff acerca da ética do cuidado revela-se a articulação entre o amor e o cuidado, ambos, por sua vez, fundados num sentido místico. Toda mística, tanto na tradição Ocidental, como na Oriental, implica um sair de si. Cada tradição interpreta o sair de si de forma singular. Na mística cristã, o êxtase implicava um sair de si para dedicar-se a experiência fundamental do amor caridoso. Para Leonardo Boff (1999, p. 91),
O cuidado somente surge quando alguém tem importância para mim. No cuidado estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.
Leonardo Boff associa o cuidado ao desvelo. Lembremos que desvelo significa tirar o véu, permitindo a emergência de uma revelação, ou seja, que algo apareça, que venha à luz. O cuidado propicia um desvelamento na medida em que abre a possibilidade da descoberta a um só tempo de si e do outro. Esse outro, que não se limita à intersubjetividade, diz respeito também à natureza, à cada pessoa, aos diferentes contextos sociais, culturais, religiosos, enfim , ele se refere a tudo que componha um sentido mais próprio de existência: o existir do homem não é autossuficiente, e sim, um novelo de relações. O desvelamento propiciado pelo exercício do cuidado, confere às relações que humanas uma proposta ética, cujo fundamento reside na revelação de um modo de ser originário da existência.
Cada pessoa é um mistério. Podemos conhecê-la através de um longo convívio, pela intimidade do amor ou pelas abordagens das ciências e das várias tradições da humanidade. Mesmo assim, ninguém poderá decifrar e definir quem é Maria, Márcia, José ou Fernando ou quem quer que seja. A pessoa emerge para si mesmo e para os outros um mistério desafiador. Somente sabemos o que cada um revela de si mesmo ao largo da vida e pode ser captado pelas várias formas de apreensão que temos desenvolvido. Mas, apesar de toda a diligência, cada um permanece um mistério vivo e pessoal.
(…) O órgão para captar esse mistério é o coração, aquilo que Pascal chamou “espírito de fineza.” É uma atitude de simpatia fundamental, uma capacidade básica de sentir os outros em sua situação concreta (coração). Pelo espírito de fineza nos descobrimos como vulneráveis. Somos afetados pelos outros e podemos afetá-los, despojando-nos do cálculo e do interesse (Boff, 1994, pp. 14-15).
IV. A ética do cuidado e o resgate da centralidade da pessoa: proposições para uma consciência renovada do significado da existência.
O sentido religioso da experiência amorosa é constituído pelas instâncias do ligar-se a e do tornar a ligar. O cuidado apresenta a proposta de estabelecer um fio condutor na relação entre as pessoas, ao longo do qual nos dispomos a reconhecer e lidar com a alteridade. Também fala da experiência da relação da pessoa consigo própria. Como lidar com o outro no cultivo do cuidado, se não nos permitimos experimentar profundamente as nossas próprias emoções?
Leonardo Boff, inspirando-se, por um lado em Martin Heidegger (2012), e, por outro, elaborando uma interpretação ética do cuidado, ressalta que nós não temos cuidado: nós somos cuidado (Boff, 1999, p. 89). Na base de uma proposição ética desvela-se uma condição originária da existência. E, se estamos admitindo tal dimensão, devemos levar em conta o par complementar cuidado-negligência: assim com somos cuidado, somos falta de cuidado. Isso significa que o tornar a ligar diz respeito ao fato de que o fio que nos liga e religa ao outro é constantemente arranhado, senão rompido. Trata-se de uma tecedura infinita, cuja trama tece a trama da existência.
Na ética, nos preocupamos com a amarração desse fio num sentido constituinte de proposições que visam dignificar a pessoa humana. Sem negar a condição humana (demasiado humana) da pessoa, a ética promove uma revisão de valores, questionando alguns, interrogando outros, retirando outros do esquecimento, elaborando novos princípios. Nessa perspectiva, justifica-se que Boff ressalte que somos cuidado. Acreditamos que é importante ressaltar a perspectiva do cuidado. Estamos num tempo do marketing, da vasta produção de imagens sem um sentido significativo para a vida das pessoas; do entretimento que faz uma apologia do bem-estar sem preocupar-se com o bem comum, que torna a violência um grandioso espetáculo; da hiperinundação da informatização e de uma tecnociência que não coloca a pessoa como valor fundamental; do culto ao individualismo jamais testemunhado; de um fomento ao consumo sem limites que não o da dívida do cartão de crédito.
A ética do cuidado não apenas avalia criticamente a cultura do narcisismo e do consumismo, como põe em destaque as relações entre as pessoas como sentido e fundamento da existência. O professor Olinto Pegoraro nos lembra, oportunamente, uma mentalidade corrente nos burocratas e técnicos envolvidos com a ideologia neoliberal: “faz-se crer que, resolvidos os problemas mundiais da economia, tudo o mais será decorrência. Produtividade, concorrência, consumo e lucro são os corolários da economia globalizadas. É um estreitamento de horizontes” (Pegoraro, 2000, p. 9).
Não se trata de uma mera proposição moral. A referência ao cuidado, sob a perspectiva da ética, torna a lembrar certas condições básicas do modo de ser humano, sem o qual ele perde o sentido da existência: a solidariedade, o espírito de comunidade, a capacidade de sentir junto, de participar (com-paixão), a reciprocidade.
Na ética do cuidado, temos como um dos corolários fundamentais a centralidade da pessoa. A pessoa como valor de excelência, significa não negligenciar a consideração do outro, a dialogação, a comunicação, a presença mútua, a co-participação e a co-gestão. Olinto Pegoraro não hesita em afirmar que
A tese de recolocar no centro de tudo a pessoa é a maior revolução que a humanidade pode fazer. Será realmente uma nova era onde reinarão a justiça, a solidariedade e a paz entre todos os viventes humanos, aliados com todas as outras formas de vida e com os ecossistemas. É esse um estupendo projeto, vivo e positivo para iniciarmos o terceiro milênio da era cristã (Pegoraro, 2000, p. 9).
Referências
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_____. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. 4. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.
_____. Ratzinger: exterminador do futuro? (III). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 out.2000.
_____. Ética e moral: a busca dos fundamentos. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. de Newton A. von Zuben. 2. ed. São Paulo: Moraes
COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor. 5.ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_____. Razões públicas e emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
CUNHA, Maria Helena Lisboa da. Nietzsche: espírito artístico. Londrina: CEFIL, 2003.
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução. Trad. de Jayme Salomão et alii. Rio de Janeiro: Imago, 1974, ESB, vol. XIV.
HEIDEGGER, MARTIN. Ser e tempo. Trad. de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 6ª ed. rev. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.
PEGORARO, Olinto. A utopia da justiça. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 26 dez. 2000.
SANTOS, Laymert Garcia dos. Consumindo o futuro. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 fev. 2000. Mais!, pp. 6-8.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. de Paulo Perdigão. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
Belíssimo! Querido amigo e professor. Grande abraço…