Liberdade em questão

Tereza Erthal

Seria a liberdade um privilégio eventual de uma propriedade a conquistar? Seria o mesmo que vontade, decisão consciente ou deliberação racional? De acordo com Sartre, se toda a natureza é regida pelo determinismo, ao homem, e só a ele, cabe o reino da liberdade.
A liberdade é a razão mesma da consciência. Para a realidade humana, ser é escolher-se. Neste sentido, uma pessoa não poderia ser ora livre, ora escrava; ou é inteiramente livre, ou não o é. Somos livres para escolher, mas não somos livres para deixar de ser livres. Os limites da liberdade residem na própria liberdade.

Situação e ato: A liberdade deve manifestar-se concretamente, dar provas de si em ato. Ser livre é fazer escolhas concretas. Não se concebe liberdade sem escolha. A individualidade e a finitude de nosso ser também são definidos pela realização de alguns possíveis com exclusão de outros. Se tivéssemos infinidade temporal, realizaríamos todos os possíveis, mas não seríamos livres, pois não passaríamos de um desenrolar em série infinita de todos os possíveis e desapareceremos como individualidades. A liberdade subentende o fato de que todos os possíveis não são realizados. A consciência é livre por ser inacabada, uma espécie de insuficiência de ser.
A liberdade também não é pura abstração ou absoluta transcendência porque a consciência não vive apartada do mundo, mas inserida nele. A liberdade é situada na realidade objetiva. Se desejo ser uma mulher alta, a minha livre decisão não é capaz de me tornar o meu desejo.
Resistência necessária: Assim como a mudança temporal não é absoluta, pois exige alguma relação com algo que permanece, também a liberdade exige algo que a contrarie. Precisa de um campo de resistência do mundo. Sem obstáculos não há liberdade. Deve haver uma separação entre a concepção de um ato e a sua realização concreta. Somos livres porque a separação entre o fim a realizar e nós próprios é mediada pelo mundo. No sonho, a consciência não depara com obstáculos, assim como não há necessidade de ação.A concepção acarreta a aparição instantânea desse possível, que deixa de ser um possível . Se imagino o helicóptero que desejo ter, imediatamente o vejo, diferente da vida real.
Papel do corpo: É o nosso corpo que impõe a necessidade de agir para concretizar uma idéia. Se pudéssemos conceber uma consciência sem corpo, nenhum projeto teria cabimento, já que não haveria possíveis, apenas realidades espontâneas, como no sonho. Sendo a consciência também corpo, e não pura abstração, é a ação deste corpo que separa o esboço de um projeto de concretização.

Senso comum: Para o senso comum, somos livres quando nada nos oprime ou impõe resistência. Contudo, esta é a liberdade onírica. A consciência tem que estar comprometida na liberdade real. A situação é o obstáculo necessário que devemos transpor para realizar os fins. Quanto mais pressões, mais claramente a liberdade se afirma.
O conceito cristão de livre arbítrio nos diz que o homem possui o bem infinito de sentir-se livre interiormente, seja escravo ou senhor. Isso nos leva ao conformismo: não haveria razão de mudarmos as condições da vida social para o homem que já possui integralmente a sua liberdade. O conceito sartreano de liberdade não afirma que um homem cativo é livre para pensar o que quiser, mas é livre para agir dessa ou daquela forma, seja para tentar uma fuga, ou resignar-se ao cativeiro. Isto porque a liberdade de escolha implica já um fazer.
O sucesso ou o fracasso do nosso projeto não importa para a nossa liberdade. No mundo real, o fato de não conseguirmos realizar um fim almejado não significa que não sejamos livres. A verdadeira liberdade não é a liberdade de obtenção, mas de eleição.Não se trata de fazer o que se quer, mas em querer fazer o que se pode.
Por ser livre, a consciência, ao surgir no mundo, é uma total indeterminação de si mesma. No início é apenas uma possibilidade de ser. A partir desta pura existência, o homem se faz a si mesmo e cria a sua essência. Sem ter onde se apoiar, nem fora nem dentro, o homem fica obrigado a suportar o peso de sua liberdade, solitário, sem ter onde se agarrar. Resta-lhe ser o único responsável pela sua vida.O homem é o único legislador de sua vida e a lei é “escolhe-te a ti mesmo”, ou como prefere Jules Lequier, “fazer e, ao fazer, fazer-se”. A cada momento o homem deve escolher o seu ser, lançando a seus possíveis e construindo, pouco a pouco, a sua essência, através destas escolhas, contando para agir somente com a voz da sua consciência. A definição categórica de uma pessoa, afirmando que ele é definitivamente algo, não procede. Como o homem inventa perpetuamente o seu ser, sem possuir uma essência imutável, sua definição jamais se completa em vida e se conserva aberta até a sua morte. Como disse Sartre, “uma hora antes de morrer, ainda estou vivo”.

Liberdade e condicionamento:
É comum pensarmos que somos responsáveis por nossos atos quando manifestamos a força da nossa vontade. Numa situação perigosa, decidimos agir com coragem. Minha vontade é soberana, de acordo com esta teoria. Concordando com ela, nos iludimos sobre nossa liberdade, pois seríamos condicionados por fatores externos ( nossa situação no mundo, condições materiais, estado econômico…)ou por causas internas (forças inconscientes, instintos…). Tais teorias aceitam que ora somos livres, outras não. Mas a consciência uma vez livre, tem que ser livre sem cessar porque se uma única vez uma compulsão motivasse a nossa consciência, não teríamos como recuperá-la: de onde iríamos retirar essa liberdade perdida para deixarmos de ser um joguete?
Um ato voluntário não é a manifestação da nossa liberdade, mas de um modo de ser da consciência, já sustentada por uma consciência originária. Ao dizer “fiz porque quis”, o fim visado já estava anteriormente posto.
Igualmente falso é contrapor o ato voluntário ao ato emocional, como se o primeiro fosse sinal de liberdade e o outro escravo das paixões. Quando nos emocionamos, também agimos livremente. As paixões não nos são impostas. Trata-se de um projeto com um fim. Este equívoco se deve às concepções errôneas das emoções.
Alguns psicólogos acreditam que a emoção surge de repente por uma causa oculta, inconsciente. Quando sentimos medo, sabemos que temos medo e do que tememos. O medo é sempre medo de algo. Conserva-se na emoção o princípio da intencionalidade: quando agimos emocionalmente, nossa consciência se organiza livremente com vistas a um fim. Mas não há reflexão; usamos a consciẽncia irreflexiva, voltada para o objeto de emoção. Como não refletimos, achamos que foi inconsciente. O exemplo do Sartre é bem esclarecedor: obrigada a confessar um segredo, começo a chorar. Não choro porque não posso confessar, mas para não confessar. A emoção não é determinada por uma causa, mas representa uma intenção projetiva da consciência livre. É uma conduta mágica que a consciência se utiliza para transformar o mundo real, que escapa ao nosso controle. Escolhemos a fantasia, como uma forma escapatória para iludir as dificuldades.
Assim, tanto a emoção como a vontade são dois modos de ser livre. Pela emoção, optamos pelo aspecto mágico; pela razão ou vontade, pelo aspecto real. Posso, numa situação me escolher medrosa e em outra, corajosa.
Motivos: O projeto humano é movido por uma intenção e esta se baseia em motivações. A situação em que nos encontramos (realidade objetiva, escolhas do passado, etc)são fatos irrefutáveis, mas em sua neutralidade, não são capazes de motivar nossos atos. É a consciência que atribui sentido a elas e delas faz um motivo para os seus atos.
Da mesma forma, fatores subjetivos não o podem fazer. Os complexos são projetos: se escolho a minha imagem como problema para ser uma atriz, foi o meu projeto de ser atriz que me elegeu como feia, por exemplo. Criei um motivo para agir timidamente, com vergonha da minha aparência física. O motivo só aparece a partir da liberdade. Então, nenhum motivo pode atuar sobre a escolha original que fazemos de nós mesmos. O motivo de uma ação surge somente com o aparecimento de um fim futuro.

Conclusão:
A liberdade não pode ser determinada por nenhuma causa, nem limitada por nenhuma outra. Só encontra no mundo os limites que ela mesma colocou. É ela que estabelece os obstáculos que irá se defrontar. Apenas a liberdade pode limitar a liberdade. Ela nos aprisiona nela própria porque estamos condenados a ser livres.Não posso escolher não ser livre, do mesmo modo que não escolho ser livre. Se pudesse escolher-me livre ou não, isso implicaria uma liberdade prévia de escolha, e, uma vez livre, já o seria então pra sempre!