Motivos, Móveis, Fins: como se processa nossa afetividade?
Luis Veríssimo
Estudando as relações humanas, especialmente as relações afetivas, queremos entender como Sartre vislumbra a afetividade. Sabemos que ele não quer vê-la como algo independente da contingência que marca a existência. Se quisermos pensar a afetividade à luz de Sartre, não queremos dar passos que nos parece que ele não deu. Não podemos nos autorizar a entender que haja uma essência dos fenômenos relacionais afetivos, chamemos isto de amor, sentimento, paixão, afetividade.
As condições históricas podem mudar, e, efetivamente, mudam. Mas a paixão e o amor podem ser encontrados em todas as épocas, tematizados pelos mais diversos autores e artistas. Algo essencial parece unificar a humanidade em torno do amor e da paixão. Com toda diversidade cultural e histórica, sempre a elas o homem retorna. Essas ideias nós já a ouvimos, e nós mesmos já a adotamos (confessamos) por acharmos plausível, pelas nossas vivência pessoais, até por simpatia. Mas Sartre recusa uma metafísica para a afetividade.
Nossa experiência dos afetos nos insinua que a paixão parece nos tomar de assalto. Esse movimento, comum à vivência da paixão foi muito bem expressa na boca do personagem Visconde de Valmont no filme Ligações Perigosas (baseado no romance homônimo de Laclos). Na versão dirigida por Stephen Frears (1988) o personagem insiste em dizer para a sua amada, ao querer se livrar da relação: “está fora do meu controle. Porque está fora de meu controle”. A paixão parece agir em nós como um demônio, no sentido não de capeta, mas de espírito que acompanha a pessoa, de uma força que se apossa da pessoa. Em geral, a pessoa é surpreendida por um encantamento inesperado por alguém, e um rápido aprisionamento a esse encantamento. Se o outro me olhar, estou definitivamente cativado, estátua de sal, pronto para cair por terra em minha solidão sôfrega, reclamante, porém, abrigada e onipotente.
Os antigos, do porte de um Aristóteles, acreditavam que a virtude requeria que as inclinações naturais se tornassem continentes à razão, trabalho que caberia à racionalidade não puramente teórica, mas também prática, ou seja, a uma práxis diária e sistemática para desenvolver a virtude. Hoje, com o advento da psicanálise e da psicologia, das filosofias de Nietzsche e Kierkegaard muitos já não pensam assim. O pêndulo do pensamento Ocidental verteu-se ao polo oposto: não há contenção suficiente para a paixão. Ela desafia o nosso arbítrio, rasga a nossa autonomia, despedaça a nossa orientação racional. Em Freud, aprendemos que a paixão pode ser contida pela moral internalizada pelo sujeito. Mas essa moral também passa pelo universo das paixões, vale dizer, do desejo, seu fundo não é o logos (racionalidade), mas o pathos (as paixões humanas).
A própria etimologia de paixão parece confirmar esse quadro, lembra-nos uma espécie de caos invasivo, inserindo-se nas tentativas da razão de organizar e comandar a própria casa. Pathos nos remete a um padecer. Tem a ver com a ideia de estado passivo, sofrimento, enfermidade . Em latim torna-se passio. O estudioso do mundo antigo Dodds nos introduz no horizonte histórico dessa tonalidade afetiva.
O homem grego havia sempre sentido a experiência da paixão como algo misterioso e aterrorizante, como a experiência de uma força que o habitava e o possuía muito mais do que alguma coisa possuída por ele. A própria palavra pathos é um testemunho disso: como o termo latino equivalente passio, ela se refere a algo que “acontece” ao homem, algo de que ele é vítima passiva.
Uma concepção de afetividade que Sartre não encampa é a fundação da afetividade originariamente numa estrutura psíquica. Nessa maneira de abordar, haveria um dinamismo psíquico, um modo de organização e funcionalidade que se imporia a nós, e às nossas escolhas deliberadas. Essa imaginada instância Sartre trata com a designação de “móbil” (móvel). Nosso comportamento, segundo a concepção corrente na psicologia, admite uma regulação psíquica por móveis e motivos. Os motivos são as justificativas racionais que damos ao nosso agir e às nossas intenções. Há uma intencionalidade objetivante nessa ação. Ligamos os motivos a uma suposta lógica da situação, a uma instrumentalidade requisitada por procedimentos que visam a um fim que, em geral, nos é acessível em seus detalhes. Quando justificamos nossa ação com motivos, o fazemos “à luz de certo fim, como apta a servir de meio para alcançar este fim”
O móvel seria aquilo que se apresenta junto aos motivos, como um aspecto eminentemente subjetivo. O móvel segue aquilo que volta e meia chamamos com um termo da física, o móvel segue “a dinâmica” das paixões. Enquanto os motivos são determinados por seleções cognitivas e pelo arbítrio da vontade, os móveis não apenas concernem ao domínio dos desejos, emoções e paixões, como nos impelem a realizar certos atos . Estamos na instância dos móveis sob o domínio do subjetivo, do psíquico, daquilo que se apresenta junto, mas que parece estar “por trás” de nossas intenções “conscientes”, na verdade até animando-as, como se nossos motivos fossem fantoches objetivos de um desejo subjetivo. Sartre assinala a sedução para o psicólogo. O psicólogo (…) buscará de preferência os móbeis: em geral pressupõe, com efeito, que estão “contidos” no estado de consciência que provocou a ação .
A relação entre móvel e motivo exemplificaremos por Kurt Lewin em sua clássica obra Princípios de Psicologia Topológica (1936). Lewin usa os termos “situação momentânea” e “situação vital” para o que chamamos, respectivamente, de motivos e móveis. Numa belo dia, uma mulher está trabalhando na máquina de tear de uma fábrica. De repente, o fio se quebra. Ela verifica o problema, tenta descobrir o que aconteceu. Ela se percebe, então contrariada, e constata que redeu pouco durante a manhã, pois falta pouco para o almoço. Essa é a sua situação momentânea. A “situação vital” explica ao menos em parte, a sua situação momentânea na fábrica naquele dia. Lewin descreve-a.
Ela está casada há três anos. O marido está desempregado há ano e meio. O filho de dois anos tem estado seriamente enfermo mas hoje parece um pouco melhor. Ela e seu marido têm recentemente brigado cada vez com mais frequência. Discutiram esta manhã. Os pais de seu marido sugeriram que ela mande a criança para a casa deles no campo. A mulher está indecisa sobre o que fazer.
É óbvio até que ponto a situação vital e a situação momentânea se encontram relacionadas. Neste caso, a situação vital pode servir como um pano de fundo, algo remoto para a situação momentânea. Ou pode ser que a mulher estivesse pensando em seu filho enquanto trabalhava e, desta maneira, a situação vital torna-se frequentemente, parte da situação imediata. Mas, mesmo quando ela estava atarefada consertando o fio quebrado e deixara de pensar na situação familiar, mesmo então a situação vital permaneceu significativa, pelo menos indiretamente. Afetava o estado da pessoa, e, por conseguinte, as reações dela na situação momentânea.
A adoção da explicação do comportamento por motivos e móveis é, para Sartre, uma pista falsa, se for tomada em seus moldes clássicos. O problema não consiste em se admitir motivos e móveis como estruturas de nosso comportamento, e sim, na forma de interpretá-los. Para entender essas estruturas precisamos nos pautar não numa dinâmica de forças, mas,\/ na esfera do sentido.
A ênfase, na leitura de Sartre, não recai sobre modos de funcionamento psíquico. Sartre volta seus olhos para a consciência. Porque o psíquico não pode ser pensado à parte de um constituinte mais originário: a consciência. E consciência para Sartre não é uma tópica, um lugar onde se dariam relações entre afetos e representações, entre modos psicológicos fundamentais e símbolos. No terreno sartriano, parece-nos que pensar o homem “psiquicamente” é pensar o homem fenomenologicamente. A psicologia em Sartre não só remete a uma fenomenologia, como é uma fenomenologia. Nossos processos psicossomáticos estão imersos numa teia de significações. Corpo e signo, ou seja, corpo e linguagem são uma totalidade. Uma totalidade indissociável. Palavras de Sartre: “A consciência do corpo é comparável à consciência do signo. O signo, além disso, é um aspecto do corpo, uma das estruturas essenciais do corpo”.
A captação do sentido por alguém, nomeando aquilo que lhe “acontece”, que se “passa com ela”, escapa de um saber completo e “verdadeiro” sobre si, escapa de uma adequação perfeita entre o que a pessoa diz que está se passando com ela e o que efetivamente se passa com ela, mas não por isso se evade do âmbito da significação. Nomeamos, explicamos, adjetivamos as tonalidades afetivas, as sensações corporais. Mas tal empresa de dar sentido não esgota a possibilidade da significação. A significação transcende a apropriação do sentido pela consciência que quer conhecer o que se passa com a pessoa. Mas, é preciso muita cautela e atenção nesse ponto: não há a concepção de um outro da consciência, ou de um outro em relação à consciência, que seja. A própria consciência quer ver o que se passa com a pessoa, e a própria consciência é consciência que escapa de seus esforços de explicação e clareza. A consciência não é apenas cognitiva. Ela é vivencial. Em que sentido estamos nos reportando ao cognitivo e ao vivencial?
A consciência não é um algo na pessoa, ela se confunde com a própria totalidade da pessoa. Nós somos consciência. Nosso olhar se volta para aquilo que se passa conosco, quando damos conceitos, formas e explicações ao que vemos e sentimos. Mas essa compreensão é transcendida pela nossa temporalidade, pela totalidade de nosso existir, que trama a rede de significação. Essa temporalidade, por sua vez, se liga às nossas escolhas, sejam elas cognições racionais, sejam elas realizadas impulsivamente, passionalmente, vivencialmente. Experimentamos uma determinada situação. Ou melhor, experimentamo-nos numa determinada situação de vida. Só vemos nós no momento e a situação. No caso do atendimento psicoterápico, o paciente relata uma situação e ele na situação. Ele não “vê” naquele momento a totalidade de sua vida, nem há espaço ou tempo para isso. Não vê a totalidade temporal de sua vida, e não capta a totalidade vivencial da situação que relata. Não há como ele captar, nem se lembrar de todos os detalhes, episódios, afetos, ações de toda a sua vida, ou mesmo de uma situação pontual que relata. Mas a linha de sua vida está correndo, toda ela, em cada atitude, por menor que seja. Apelando para representação da Gestalt, ele vê uma figura ao relatar um “fato” um situação de sua vida, ele põe uma questão de sua existência, um problema como figura. Mas essa figura também é formada por uma fundo, que nada mais é do que a totalidade da sua existência: tudo que viveu até então, o que vive no agora, e suas expectativas de futuro. Tudo isso está em jogo em cada situação que ele coloca em terapia. Em cada dado que ele joga no tabuleiro da terapia, vários dados já estão jogados.
Podemos, agora, dar de novo a palavra a Sartre, quando ele comenta acerca da imbricação da consciência – e da nossa afetividade com o corpo e com a linguagem.
Ora, a consciência do signo existe, senão não poderíamos compreender a significação. Mas o signo é o transcendido rumo à significação, aquilo que se negligencia em benefício do sentido, que jamais é captado por si mesmo e para além do qual o olhar se dirige perpetuamente .
A consciência não necessariamente e sempre tematiza o sentimento nem o corpo, ela, antes, os vivencia: a isso, Sartre chama de consciência (do) corpo, O do entre parênteses assinala a consciência não-tética, ou seja a consciência que não visa o corpo como seu objeto de conhecimento. A visada do corpo no âmbito não-tético ou consciência de primeiro grau, ou, ainda, consciência (do) corpo se dá pela vivência, e não pelo conhecimento. A imbricação da consciência (do) corpo com o sentido formam um corpo hermenêutico, um corpo-linguagem, forma mais própria do que costumamos na psicologia estimar como o “psiquismo” humano. Em Sartre, motivos e móveis juntamente com os fins desvelam a nossa afetividade original: “A consciência do corpo se confunde com a afetividade original”.
Podemos, neste momento, retomar a relação entre motivos e móveis (causas), e articulá-las à noção de fim. Vale sublinhar, como faz Erthal, que “Causa, motivo e fim são indissociáveis da consciência que se projeta até suas possibilidades e se define por elas.” Os motivos são as explicações objetivantes que conferimos a nós e ao mundo, como visto acima. Para Sartre, é o Para-si que faz com que haja mundo. Ao se fazer no mundo ele não só faz o mundo, como faz com que o mundo se justifique como tal. Pois o mundo não é o planeta terra independente do habitar humano. Ao revés, é o habitar humano que não só “humaniza” o mundo, como lhe torna efetivo, lhe dá o sentido efetivo de mundo, campo de vivência, historicidade, significações, atos, intenções, lembranças, utopias. A geografia do mundo, do ponto de vista existencial, é uma cartografia do ser-aí, insere-se na sua factidade, ou seja, se enquadra no existir humano: aberto, histórico, vivido, temporal, finito, rede do entrelaçamento das interrelações com as significações.
Nesse contexto de mundo, damos sentidos às tarefas cotidianas. Cortamos legumes porque queremos uma comida saudável. Vamos à repartição porque estimamos que não podemos sobreviver sem trabalhar. Dizemos alguns nãos aos nossos filhos, ou nem sempre atendemos imediatamente às suas petições porque estimamos que, por mais duro que nos seja, isso será de algum modo bom para eles, que é necessário a noção de limites para a sua formação na vida. Mandamos e-mails mais caprichados, mais pessoais a quem estimamos de forma especial, até nos dispomos a dedicar mais tempo a essas pessoas. São formas com que justificamos nossas ações por motivos.
Pois bem, querer ter uma vida saudável, colocar na pauta da vida a “sobrevivência”, achar que limites são também estruturantes na educação dos filhos, dar um tratamento especial a quem é querido são justificativas deliberadas para nossas escolhas, mas não encerram o problema da compreensão de nossas escolhas. Essas justificavas se inserem num quadro bem maior, encerra móveis que se dão conjuntamente com elas. Por exemplo, ter uma vida saudável para alguns significa a tentativa de afastar a morte, o envelhecimento, a decrepitude. É uma forma mágica de dar fim literal ao ser-para-um-fim que somos, antecipá-lo, controlar a saúde é controlar a vida, e consequentemente, é uma tentativa de controlar a morte. Para Joana, o dar limite ganha contornos de sua história, onde ela foi educada com muito mais nãos que sins. Guardou esse ressentimento a sete chaves, insistindo que ama muito os seus pais, especialmente sua mãe, que dizia vários nãos a ela, quase não a deixava brincar, demonizava o prazer, tinha várias restrições à espontaneidade. A mãe era professora e gostava de estudar. Ao mesmo tempo se considerava uma pessoa muito religiosa. Em sua forma de vivenciar a religião, para ela tudo era ou podia logo decair pecado, em nome da religião que seguia, “em nome de Deus”. Quando Joana “educa” sua filha, não está mais do que reproduzindo modelos com os quais não só se identificou como se identifica até hoje, quando segue a mesma religião dos pais. Já Antonia foi educada numa família liberal e de gostos artísticos e intelectuais. Ela se formou em pedagogia e acredita em certos ideias de educação, que dá valor. Quer fazer na prática, seja na escola, na sociedade e com os filhos o que aprendeu na teoria, não para repetí-la, mas para desenvolver um humanismo aplicado às pessoas. Quando ela dá limites aos filhos, ela não pensa senão na situação imediata que suscita essa atitude. Mas ela também o faz por certos móveis, que se dão junto aos motivos objetivos. Ela o faz porque acredita que o amor envolve também limites. Essa amorosidade, por sua vez, insere-se em sua formação humanista, seja na sua escolaridade, seja em casa, no convívio do lar íntimo. Ela diz que sabe que não pode, nem vai acertar sempre, mas está fazendo o melhor que pode, e está fazendo a partir daquilo que acredita.
Nossas motivações, explicações mediatizadas pela voluntariedade e pela racionalidade, são elaboradas junto com nossos móveis, nossa subjetividade como um todo, o que se estende no tempo. Por sua vez, causas e motivos se enquadram num projeto de vida. O projeto original acompanha, estrutura as causas e os motivos. Dou motivos a partir de uma autoestima e de uma autoimagem. Por sua vez, elas são estruturadas na temporalidade de meu existir, estão dentro de um fundo de vivências e escolhas. A totalidade desses processos está inserida em meu projeto original.
Queremos, agora voltar para a paixão. O tema da paixão é instigante, pois ela nos provoca e nos descentra. A paixão é experimentada como um algo que nos possui,. Parece ser, em termos de uma psicologia clássica, estruturadas por uma instância independente da consciência. Mas, já vimos que Sartre não acompanha essa lógica. Em primeiro lugar, há que considerar que Sartre não considera que a consciência seja sempre voluntariosa. Ela é também da esfera da vontade, mas não só. Nossas ações, ainda que sendo consciência, não são necessariamente arbitrárias. Estudando Sartre, podemos considerar tanto a paixão como a vontade expressões da consciência, em última análise a própria consciência em seu devir constante, e não mais precisamos adotar uma dicotomia que põe de um lado a consciência e, de outro, o mundo das paixões e do desejo. Tanto a vontade quanto as paixões se inserem numa temporalidade que aponta para um projeto original. Assim, Sartre entende que “já não vemos mais por que reservar autonomia para a vontade.”
A consciência é nadificação, ela nega um estado de coisas, ela nega o mundo tal como é. Porque não há mundo sem homem, não há mundo sem consciência. A consciência faz, juntamente, aparecer o mundo. “O Para-si é o ser pelo qual “há” um mundo. Melhor ainda: só pode revelar-se a um Para-si que se escolhe desta ou daquela maneira, ou seja, a um Para-si que faz a sua individualidade” Dependendo de como a consciência se lança e estima o mundo, ele aparece cercado por objetos com uma instrumentalidade prescrita de antemão, valores bem delineados e toda sorte de motivos que justifiquem nossas ações nele; ao mesmo tempo, ele pode aparecer sob o colorido das paixões e do desejo, enviscado pela subjetividade, que pode inclusive negar os motivos tão bem arrolados, arrumadinhos, engomados, tramados para o que encaixamos numa abordagem objetiva para lidar com as pessoas, coisas e situações no mundo. A consciência é negação do mundo e de si. Seu movimento é transformação, possibilidade, nadificação. Sartre: “A paixão não é, antes de tudo, projeto e empreendimento? Não posiciona justamente um estado de coisas como intolerável? (…) E se a nadificação é precisamente o ser da liberdade, como negar autonomia às paixões para outorga-la à vontade?” .
Por isso, Sartre conclui que a deliberação voluntária, se considerarmos o problema da ação resolvido por uma autonomia da vontade, é sempre ilusória. “Com efeito, como julgar motivos e móbeis aos quais precisamente confiro seu valor antes de qualquer deliberação e pela escolha que faço de mim mesmo?” . Não podemos tomar motivos e móveis como se fossem forças motivadoras do comportamento paralelas, e cada uma se resguardasse em sua autonomia, em sua natureza. “Na verdade, motivos e móbeis só têm o peso a eles conferido pelo meu projeto, ou seja, a livre produção do fim e do ato conhecido a realizar.”
Por essa forma de compreensão à luz do pensamento de Sartre, podemos evitar um modelo calçado em dicotomias: razão x afetividade, vontade x desejo, paixão x amor, consciente x inconsciente, racionalidade x natureza. A paixão insere-se num projeto de ser e de viver. Numa forma de dar sentido à existência. Numa forma que foi sendo constituída desde a infância, em cada escolha, a cada escolha. Cada escolha se inscreve na temporalidade da pessoa. Somos um projeto rumo a um fim .
Dessa forma, quando delibero, os dados já estão lançados . Proposição forte de Sartre, que indica o enfeixamento da paixão, do amor, dos atos, das intenções, dos motivos, dos móveis em um projeto em devir rumo a um sentido, finalidade que imputamos ao existir, que pode ser reconhecido de forma tética, ou seja, tematizado mediante reflexão, mas que se processa de forma igualmente não-tética, vivencial. Se me lanço na forma de justificar-me por motivos, se me lanço num modo de acreditar que se possa não permanecer todo tempo submetido exclusivamente à sedução sensível e estética da paixão, se me lanço num modo em que possa elaborar os sentimentos em nome de um projeto de vida em comum, se me lanço na forma passional vivencial, se me lanço no modo da sedução, se me lanço num modo sádico, num modo masoquista como Sartre os descreveu, são escolhas dentro de um sentido orgânico de vida, dado não pela psiquismo, nem fora do psiquismo, não por causa do corpo, nem à revelia do corpo, construído pelo existir, que é uma totalidade; pois não importa o respirar ou o sexo ou o pensar em si mesmos. Importa o sentido enquanto projeto original que se dá ao existir.
Cada escolha que fazemos já foi, de certa forma, escolhida e remete a um escolher “futuro”. As nossas escolhas atuais dão contornos às nossas futuras escolhas. No entanto, elas não fecham esse escolher, não o definem de todo, caso contrário o ser humano seria um ser com o destino fadado à fatalidade.
Tereza Erthal enfatiza o aberto ao futuro no projeto rumo a um fim de cada um.
Na verdade, o motivo, o ato e o fim são partes de uma mesma estrutura em que cada um objetiva os outros dois. No entanto, é o ato que será capaz de decidir o fim e os motivos, pois o ato é expressão de liberdade. Ao contrário do determinismo – que prega uma certa continuidade da existência, concebendo o motivo como um fato psicológico capaz de gerar o ato, da mesma forma que a causa determina o efeito – o existencialismo não considera causa e motivo como coisas. Ambos são vistos com tendo significado atribuído exclusivamente pela pessoa. Para um fenômeno ter a causa é preciso que ela seja experienciada como tal. Este significado depende do projeto futuro. Assim, o indivíduo determina os significados através das ações pelas quais se projeta até os seus fins. A liberdade os ultrapassa (transcendência). Sendo o projeto uma livre produção de um fim, e que lhe confere significado, todos (causa, motivo e fim) formam uma unidade difícil de dissociar.
Nossa temporalidade não é uma linha causal, nesse caso, não haveria outra saída para o ser do que o determinismo. A temporalidade é uma via aberta a escolhas a partir de um sentido que vem de um passado em direção ao futuro, um passado que não passa, pois é formado por retomadas sucessivas. Elas podem ser experimentadas com repetições estéreis ou como escolhas disruptivas, criando novas significações importantes. Por outro lado, o futuro pode ser experimentado como uma idealização abstrata ou como uma finalidade que dá sentido renovador e criativo ao existir.