Momentos da consciência e Liberdade.

Tereza Erthal

Para nos tornarmos pessoa, passamos por vários momentos de consciência. Antes do nascimento da autoconsciência, a criança experiencia a inocência. Neste período, não há questionamentos porque não existe ainda a capacidade de reflexão. A liberdade é “renunciada” por não poder reagir, cedendo uma parcela do seu direito de existir como ser humano, adaptando-se a esta rendição. Claro que na criança isso de fato ocorre, mas também a vemos em adultos que simplesmente abrem mão da liberdade de escolha. Depois vem a rebeldia, estágio que surge quando a pessoa trava uma luta para libertar-se. Surge o ódio e o ressentimento contra aqueles que o forçaram a renunciar a liberdade. Na criança os comportamentos rebeldes vão desde o fracasso escolar, quanto mijar na cama numa idade em que o controle já deveria acontecer. “ Fui dominado,mas agora eu os odeio”, esta seria a sentença que traduziria bem este momento. Trata-se de uma transição necessária para romper com velhos padrões, essencial para o nascimento da pessoa livre, mas precisa ficar claro que rebeldia não é o mesmo que liberdade. É mais uma reação a algo que se está em dissonância.
Mais tarde, surge a chamada autoconsciência comum. Aqui existe uma espécie de auto exame, onde os erros, preconceitos e culpas são avaliados. A ansiedade resultante serve para aprender a tomar decisões com certa responsabilidade.
Contudo, existe outro momento posterior mais raramente sentido: o “insight”.Uma espécie de organização interna sobrevem de súbito, sem que se saiba de onde. A atividade científica está cheia deles. Uma espécie de vislumbres da verdade objetiva que não aparece por acaso. Na verdade, a mente da pessoa está tão focada no problema em questão, que todas as informações, antes soltas, parecem adquirir um elo e, como num passe de mágica, clarificam o resultado.
Neste último estágio de consciência, a pessoa sente uma nova perspectiva, fora do ponto de vista habitual. Considerando que não enxergamos o mundo de forma límpida e clara, mas distorcida por nossas percepções, por nossa subjetividade, a dicotomia subjetividade/objetividade nos persegue. Cada um de nós experiencia o mundo de uma forma pessoal, interpretando-o de acordo com seu próprio mundo particular. Por meio do insight, ou intuição, aproximamo-nos de uma verdade mais objetiva da realidade, ou uma nova possibilidade ética ( um amor desapegado,por exemplo).

“ A vida ocupa-se tanto em perpetuar-se como em ultrapassar-se. Caso se limite a conservar-se, então a vida é apenas não morrer, e a existência humana não pode ser distinguida de qualquer absurdo vegetal…” (Simone de Beauvoir)

As figuras criativas vivenciam mais frequentemente esta autoconsciência refinada, enquanto a maioria a vive esporadicamente, em um momento especial, como uma experiência amorosa que lhe retira temporariamente da rotina diária. Inesperadamente, vê-se o mundo de cima e tudo parece fazer sentido. Distingue-se a verdade não ofuscada pelos preconceitos e assim, podemos amar aos outros sem exigir qualquer tipo de troca. Na verdade, existe uma espécie de esquecimento de si enquanto personalidade umbilical, neste momento criativo, pois o que há é a total absorção naquilo que estamos realizando. Isso norteia a visão das ações futuras. Infelizmente, este estágio exige muita disciplina e perseverança, exigindo, da mesma forma, um momento de tranqüilidade. Interessante notar a descrição que Nietzsche fez de Goethe: “ Ele disciplinou-se até chegar à plenitude, ele criou a si mesmo…”
Nietzsche é um exemplo interessante quando examinamos o ódio como resposta à restrição de liberdade. Filho de pastor protestante, morto quando ele ainda era criança, foi educado rigidamente por familiares, numa atmosfera coercitiva de seu background alemão. Via que a sociedade estava repleta de ressentimentos recalcados e reafirmou que este ressentimento estava no centro de nossa moral. Para ele, antes de conquistar a verdadeira liberdade é preciso encarar o ressentimento de frente, talvez, como ele fez, transformar este ódio em alguma força criativa propulsora, usando-o como motivação para a reconquista da liberdade perdida. Evidentemente, o ódio e o ressentimento fornecem uma capa protetora temporária da liberdade sentida, mas claro é também que será necessário usá-los para conquistar a dignidade, caso contrario destruirão a pessoa.

Mas o que é liberdade? É um aspecto da auto-consciência, pois se não tivermos consciência de nós mesmos, seremos impelidos pelos instintos ou pela história automática presente em nossas vidas. Pois à medida que as pessoas adquirem mais autoconsciência, a liberdade e escala de opções aumentam proporcionalmente. E cada exercício da liberdade amplia o âmbito da personalidade.
Mas para a conquista da liberdade é mister que exista a opção por si mesmo, de acordo com Kierkegaard. Tal expressão afirma a responsabilidade total por nosso Eu, aceitamos a responsabilidade por nossa própria existência, algo semelhante ao que Nietzsche chamou de “ vontade de viver” .Cabe a cada um fazer as opções fundamentais em sua vida. A pergunta agora é: como fica o amor?
O verdadeiro problema da atual humanidade é o de aprender a amar, tornar-se capaz de amar. Alguém capaz de realizar este intercâmbio amoroso pode ser visto como alguém realizado, mas isso só vale para os que atingiram a independência. A maioria dos relacionamentos humanos surge de um conjunto de motivos e de diferentes sentimentos. O amor sexual é um exemplo desta mistura. Há milênios, Platão imaginou o “Eros” como um impulso em direção ao complemento de si mesmo; o impulso sexual que faz parte da realização de um indivíduo.
Hoje, com a herança de quatro séculos de individualismo competitivo, cujo objetivo é ter poder sobre os demais, nossa geração ficou refém da ansiedade, isolamento e vazio pessoal, nada animador para a busca do amor. Muita confusão tem se criado em torno do conceito que fica difícil defini-lo. Varias formas de dependência afetiva são vistas como amor, o que não é verdade. Quando o amor é chamado com a finalidade de vencer a solidão, por exemplo, o resultado é o vazio de ambos .Só se pode amar na medida da própria independência. Algo semelhante ao que Sartre disse na sua segunda fase: quanto mais livre formos, no sentido de tanto nos sabermos livre, quanto em exercermos esta liberdade, mais permitimos que o outro o seja. Isto explica o encontro de seu grande amor aos 60 anos,quando decidiu até se casar,indo contra a própria teorização que defendia antes. O amor revoluciona! Mas é preciso ser livre antes.
O medo de se perder no outro,quando se experiencia tal sentimento, é comum apenas naqueles que ainda não conquistaram a si mesmos. Existe uma fusão, mas está longe de levar ao risco de perder-nos. É o momento de auto-realização que ultrapassa a barreira entre uma identidade e outra. O dar-se e o encontrar-se se dão no mesmo instante. Já não existe mais a guerra entre as consciências envolvidas, já que o poder sobre o outro não está mais presente. O que se quer é proporcionar alegria ao parceiro, e isso só acontece quando existe esta alegria na pessoa doadora.
Assim, uma vez que a consciência evolui, permite sempre mais a liberdade. E quando nos percebemos livres, ou pessoas construtores eternos desta liberdade, estamos aptos para amar em sua plenitude.